domingo, 23 de maio de 2010

Grande Reportagem: "O meu nome não é o meu sexo" (DN)

Saiu ontem uma reportagem no Diário de Notícias, sobre o facto de ainda ser tão difícil e demorado para nós, transexuais, mudar os documentos em Portugal.
Felizmente as coisas estão a ser faladas e trabalhadas, e há esperança de quando chegar a minha vez, as coisas já serem diferentes.

Deixo aqui a reportagem, juntamente com o link para o original.




O meu nome não é o meu sexo

O meu nome não é o meu sexo





Nasceram num corpo  em que não se reconhecem. Tomaram hormonas, fizeram cirurgias, mudaram de sexo. No espelho já vêem reflectida a imagem com que se identificam, mas ainda falta uma lei, o que atrasa o processo de mudança de nome. Adiam tirar a carta de condução, não têm passe de transportes públicos, endossam os cheques, fazem pagamentos e operações bancárias pela Internet, fazem-se acompanhar de uma pessoa de sexo oposto quando vão às consultas, dizem que se esqueceram do BI. Para não serem confrontados com uma identidade que não reconhecem. Envergonhados!



A imagem é usada por Renata, para explicar porque rasgou as fotos da infância e da adolescência. Dito assim, percebe-se porque é que há memórias que não se querem recordar. "Sentia-me num cativeiro, acorrentada a um corpo de homem. Senti muita vergonha ao longo da vida."
"Desde que me lembro como pessoa, desde que tenho recordações, que dizia que queria ser um rapaz de verdade… como o pinóquio. Deveria ter uns quatro anos", conta o João, 30 anos, professor.
A Renata, 24 anos, empregada de mesa, nasceu com sexo de rapaz, mas gostava das coisas de menina e de maquilhagem. Não percebia porque é que insistiam em pô-la na fila dos rapazes. João tinha sexo de menina, mas gostava da bola e dos carrinhos. Chamavam-lhe maria-rapaz quando só queria ser rapaz.
"A princípio não percebia bem o que se estava a passar. Também não conseguia expressar-me da melhor forma. Foi a partir dos dez anos, quando os outros miúdos me começaram a pôr de parte, que comecei a olhar para os rapazes", diz a Isabel, 20 anos, estudante.
"Em criança não se sabe o que é que se passa. Comecei a ter aqueles tiques, chamavam-me mariquinhas", acrescenta a Rute, 27 anos, estudante.
Duvidaram se não seriam homossexuais, dúvidas que a família também tinha, sem admitir. Consultaram médicos de família e psicólogos. Tomaram medicação errada, foram alvo de piadas. Até que um dia viram a palavra "transexual" num jornal ou na televisão. Quiseram adequar o corpo ao género com que se identificavam.
"A notícia foi um choque para a família, apesar de toda a gente desconfiar. Tinham a esperança de que ia mudar. Começaram a aceitar à medida que iam seguindo o processo, que iam contactando com os médicos", diz o João.
Renata, João, Isabel, Rute... são nomes fictícios. Têm finalmente o corpo com que se identificam, só a Isabel espera a cirurgia para a remoção do pénis e a construção de uma vagina. Não querem expor-se, querem virar definitivamente a página.
Mesmo a Renata, o João e a Isabel, activistas do GRIT, Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade, da Associação Ilga Portugal. "Sinto-me cansado a nível emocional. Não consigo viver a minha vida se estiver sempre a reviver o trauma, a angústia. Sinto necessidade de fechar o ciclo, de tirar o rótulo de transexual", explica o João. Também a Renata quer afastar- -se da intervenção pública. Estão a passar o testemunho à Isabel.
A Isabel, a quem os pais insistem em chamar pelo nome masculino. Apesar de fazer a depilação, "como qualquer mulher", de lhe ter crescido o peito e adelgaçado a cintura com o tratamento hormonal. Apesar de a Renata ter promovido um encontro entre as duas famílias, para os preparar.
Foi a mãe de Renata que lhe escolheu o nome feminino. Mudaram de residência quando o menino se transformou numa rapariga loira, alta e bonita. Também foram os pais do João que lhe arranjaram um nome masculino. Para identificar um rapaz de baixa estatura, barba rala, usa roupas práticas e, às vezes, rastas. Bem parecido.
Tanto a Renata como o João e a Rute têm companheiros. E só tiveram uma relação mais íntima quando fizeram a operação ao sexo. A Isabel está à espera de ter o corpo completamente modificado para assumir sem complexos uma paixão.
Clinicamente, chamam-lhe uma discordância entre a identidade de género e o corpo: transexuais. São uma minoria silenciosa e que a população portuguesa admite ser a mais discriminada ("Imagens Sociais das Pessoas LGBT", Universidade do Minho, Maio). Psicologicamente, "é um sofrimento enorme. A maioria das pessoas deixa de conviver… de viver", conta o João.
"Rasguei tudo, porque era um período em que não era feliz… não era tão feliz como agora", explica a Rute. "As fotos estão em casa dos meus pais, não as rasguei … mas também não as quero ver", acrescenta Lara Crespo, 38 anos, desempregada.
"Na escola fui sempre alvo de chacota. Era infeliz, tinha conflitos com as outras crianças. Arranjava sempre desculpa para ir jogar andebol ou basquetebol com as raparigas. Afastava-me de todas as brincadeiras de rapazes; dos carrinhos e das bolas. Adorava as barbies e os nenucos", conta a Patrícia, 28 anos, cantora.
A história de Patrícia ainda é mais complexa. Canta desde o tempo em que pertencia ao grupo Jovens Cantores de Lisboa, formado pela Ana Faria. Cresceu e tentou uma carreira a solo. Criou o Ricky. "Renasceu e desapareceu rapidamente para se tornar a Patrícia. Desde criança que não me sentia bem comigo."
Falamos de pessoas a quem foi diagnosticada uma perturbação de identidade de género e que têm, finalmente, uma imagem visual que corresponde à imagem mental. Que há muito deixaram de responder pelo nome de baptismo, mas que os requisitos legais retardam a mudar nos documentos oficiais. E o cartão de cidadão ainda complicou mais porque discrimina o sexo, o que não acontecia com o bilhete de identidade. Havia quem usasse um nome neutro para evitar embaraços.
Imagine-se o que é ter um corpo de mulher e apresentar um BI de um homem. Multiplique-se a situação pela quantidade de documentos que se coleccionam ao longo da vida. Ou, simplesmente, que está numa consulta, chamam por uma mulher e levanta-se um homem. Para já não falar das explicações que têm de se dar sempre que se viaja para fora do País.
"É humilhante. Evito essas situações sempre que posso", diz o João. "Temos de apresentar o BI em quase todo o lado. Já me apreenderam o passe. Expliquei e não quiseram saber. Só quando veio a polícia é que perceberam o que se passava", lembra o Pedro, 27 anos, técnico.
O João e o Pedro deixaram de ter passe. Também não tiraram a carta de condução, para não terem mais um documento com um nome feminino. Endossam os cheques, pagam as contas e fazem as transacções bancárias pela Internet. Dizem que se esqueceram do BI quando lhes pedem a identificação, mas que sabem o número. Vão às consultas acompanhados de um amigo do mesmo sexo que está no cartão, para evitar embaraços na chamada. Estratégias que a maioria dos transexuais usa quando a imagem não condiz com o nome oficial.
"Nunca tive uma figura masculina, tinha peito, as pessoas não associavam o nome masculino à minha imagem. Mas claro que também tive problemas. É constrangedor. Numa operação stop, um polícia começou a olhar para mim de uma certa maneira. E disse-lhe: 'Não é por si, que até é giro, mas não me vai pôr as mãos. E também não é uma colega sua que me vai ver. Levem-me ao hospital se têm dúvidas.' Deixaram-me ir embora", brinca a Rute. E espanta-se: "Toda a gente me pedia o BI e, agora, que já mudei o nome, ninguém me pede o BI!" "Estou de baixa, fui chamado à inspecção médica e lá tive de explicar tudo outra vez", acrescenta o Pedro. Traz um documento passado pela equipa de médicos do Hospital de Santa Maria - Rui Xavier (psiquiatra, sexólogo) e João Décio Ferreira (cirurgião plástico) -, atestando a identidade de género.
O Pedro já fez 16 intervenções cirúrgicas. Está na consulta de João Décio Ferreira, para "fazer mais uma pequena correcção". O Hospital de Santa Maria é o único estabelecimento público que acompanha os transexuais, depois de a consulta de sexologia do Hospital Júlio de Matos o ter deixado de fazer. Reserva o bloco operatório às terças-feiras para estas operações e já tem ocupação para dois anos e meio. A mudança da genitália demora um dia. Acompanha cerca de 70 casos, faltando operar mais de dois terços, a maioria de mulheres para homens. O cirurgião, que usa uma técnica própria para mudar o sexo, também opera no particular, mas nunca lhe pediram a operação.
"É tão linda, é a mulher mais bonita do hospital!", exclama uma técnica do Hospital de Santa Maria referindo-se a Rute. É verdade. É uma morena bonita, alegre e descomplexada, sem maquilhagem, como a maioria das transexuais com quem falámos.
Não precisou de colocar implantes mamários, já fez a cirurgia de mudança de sexo, faltando-lhe pequenas correcções. A questão do peito é fundamental, tanto para os transexuais homens como para os transexuais mulheres. Os primeiros querem remover o "alto", os segundos ver crescer "as mamas". E quando o conseguem dizem que "foi o momento mais feliz da vida".
Patrícia iniciou o processo de mudança aos 20 anos, não precisou de colocar implantes, apenas "silicone nas bochechas". "Foi suficiente o tratamento hormonal. O dia mais feliz foi quando recebi a carta a convocar-me para a operação de mudança de sexo em Junho de 2008. Foi marcada para 21 de Outubro, mas o anestesista faltou. Chorei! Fui operada no dia 4 de Novembro", lembra a Patrícia. Escolheu o nome de uma colega de quem gostava muito. Faz espectáculos por todo o País e vai editar um disco. Espera o cartão de cidadão renovado.
Rute diz que era maria-rapaz nas brincadeiras, mas sempre adorou saltos. "Como sou muito alta, 1,82, é um bocado constrangedor. Mas eu uso, quero lá saber. A minha irmã tem a minha altura e também os usa." Mesmo que fique maior que o namorado.
Nasceu na África do Sul, veio criança para o Alentejo, ficou sem mãe aos sete anos. Foi sozinha ao médico de família, tinha 20 anos. "A médica estava mal informada e deu-me testosterona. Começaram a crescer pêlos." Era tudo o que a Rute não queria. Viu depois as consultas no Santa Maria na TV.
"Contei uma mentirinha. Disse aos meus irmãos e ao meu pai, que tem 73 anos, que tinha graves problemas hormonais e que os médicos tinham dito que o melhor era mudar o sexo. Os meus irmãos disseram que, se era melhor para mim, só tinha de seguir em frente", conta. E acrescenta: "Foi tudo muito rápido, também tinha muita vontade. Moro em Portalegre e nunca faltei a uma consulta [Lisboa]. Tive uma advogada oficiosa que se interessou pelo meu caso. Pôs uma cláusula a exigir que o meu acerto de nascimento fosse mudado." E os juízes do Tribunal de Portalegre não exigiram o exame de medicina legal, como fazem em Lisboa. Mudou o nome do BI em praticamente metade do tempo que costuma levar, entre oito e dez anos. Um nome que tirou à sorte numa caixa de sapatos com os que mais gostava. "Sou indecisa!", justifica.
Renata iniciou o processo há seis anos, tinha 18, e tem de esperar pelo menos mais um ano e meio. São as contas do João, há dez anos à espera de concluir o processo. "O juiz já ultrapassou o prazo para a leitura da sentença. Cabe-lhe ter o bom senso de dar uma resposta antes do início das férias legais, digo eu, cheio de esperança", informa.
João espera a sentença há três anos. Não pode concorrer no concurso nacional de professores. Como é que ia apresentar-se com um nome de mulher? Sobram-lhe os colégios privados e os contratos precários.
"Eu ando literalmente a pedinchar um trabalho. Engulo sapos todos os dias, mas decidi suspender a minha vida até ter a parte legal resolvida", acrescenta a Renata. Quer voltar à escola, para estudar artes.
O Pedro trabalha como técnico de apoio, mas foi colocado por uma empresa de trabalho temporário. Mais uma estratégia. A identidade é salvaguardada pelo mediador.
O Pedro iniciou o processo há nove anos, um ano depois de namorar com a actual companheira, professora. Falta-lhes a mudança de nome para se casarem e adoptarem uma criança. A inseminação artificial, também, não está posta de parte.
João fez uma faloplastia (ver gráfico). "É um processo longo e doloroso. Estamos muitas vezes de baixa. Também por isso é complicado conseguir a estabilidade laboral", diz. Um processo tão doloroso e pelo qual o João não quis passar. Nem a companheira o exigiu. Ficou com um micropénis.
"Jurei a mim própria que não ia morrer com a genitália com que nasci. Quando adormecia a chorar e pedia a Deus para mudar a minha identidade", conta Eduarda Santos, 51 anos, desempregada. É essa jura que mantém a vontade de fazer a cirurgia, embora saliente que o importante não é a mudança do sexo. "O que define o género de uma pessoa é a identidade com que se nasce e não a genitália. Uma pessoa quer fazer a cirurgia porque é transexual e não é transexual porque quer fazer a cirurgia", diz.
Vai contracorrente às pessoas e médicos do Santa Maria. "Um transexual que é transexual quer mudar o sexo!" É uma afirmação que se repete ao longo da reportagem.
Mas Eduarda exemplifica com a Lei de Identidade de Género espanhola que não obriga à mudança de sexo para alterar o género na identificação, basta o diagnóstico. Será esta a formulação da lei portuguesa, esclarece o deputado Miguel Vale de Almeida.
Eduarda sente-se mulher, o que só assumiu aos 40 anos. Sempre gostou de mulheres, casou-se e teve uma filha. É uma transexual lésbica, portanto. "Eu própria me questionava se era, mesmo, transexual. Pensava que poderia ser uma coisa de média idade."
Iniciou o processo há dez anos no Júlio de Matos e este ainda não transitou para o Hospital de Santa Maria. Começou o tratamento hormonal tarde e uma tromboflebite fê-la suspender a medicação. Os traços masculinos são evidentes, apesar do peito. Vive com a filha, de 27 anos, que a trata no género neutro. E partilha a casa com Lara. Vivem com grandes dificuldades financeiras.
Lara está na lista de espera para a cirurgia, mas os problemas de saúde têm-na impedido de concluir o processo, iniciado aos 29 anos. "Vou fazer uma cirurgia ao peito, mas não tenho sofrimento com a genitália. E acabamos por nos habituar, estou quase há 40 anos com este corpo", justifica. O órgão sexual não a tem impedido de ter relacionamentos. "Sempre com homens", sublinha.
Fez jornalismo, tem formação nessa área, design e artes, mas não lhe renovaram o contrato. O fim de uma relação amorosa transformou a alegria numa depressão, há seis anos. "Nunca mais fiquei bem!", diz. E acrescenta: "Há tanto sofrimento!"


        

0 comentários:

Enviar um comentário

 

Autora

A minha foto
Sou uma Rapariga Transexual, de 17 anos, numa luta pela sua identidade. Sou sensível, afectuosa, desprotegida, mas lutadora. A minha vida é feita de sonhos e esperanças, mas quero acreditar que um dia vou poder viver como qualquer outra pessoa. Quero acreditar que daqui por pouco tempo serei capaz de ME ser, por inteiro!

Translator

I'm so sorry if this translator is stupid and makes non-sense sentences, but it's the best I have to offer.

Visitas

Desde 09/10/09


Seguidores